16 de dezembro de 2013

Adolescência - Parte II

(Leia os capítulos I e II aqui)




III

Júlia havia entrado na escola de Mateus naquele ano.

Sem conhecer ninguém, acabou se aproximando do garoto que, por coincidência, se sentou ao seu lado no primeiro dia de aula. O menino se chamava Mateus e estudava naquele colégio desde criança.

Com o tempo, ela fez amizade com outras duas meninas da sala, mas nunca deixou Mateus de lado. Sempre dava um jeito de estar perto dele. Ela passava a maior parte do tempo na escola ao lado das garotas, mas, depois da aula, ela e Mateus costumavam passar a tarde juntos em sua casa.

Começou quase por acidente, na verdade, em um dia que eles tiveram que fazer um trabalho de História. Passaram a tarde inteira na varanda do apartamento dela, conversando sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo (à noite, depois que ele foi embora, Júlia fez a tarefa sozinha e eles tiraram oito).

Gostaram tanto da conversa que repetiram a dose no dia seguinte, combinando estudar Ciências juntos. Mas novamente passaram a tarde conversando, sem sequer abrir os livros. No dia seguinte, mesma coisa: ficaram a tarde conversando na sala da casa dela, com os livros de Português abandonados sobre a mesa.

Durante alguns dias, esta rotina se repetiu: combinavam estudar juntos e ficavam batendo papo durante horas, sem nem tocar nos livros ou cadernos. Logo perceberam que não era mais preciso inventar desculpas para eles mesmos. Nunca chegaram a conversar abertamente sobre isso. Apenas desistiram de fingir que iam estudar e começaram a combinar apenas o horário em que Mateus chegaria.

Mesmo assim, Mateus levava os livros. Fazia parte da mentira que contava em casa. Todos os dias, terminava o almoço, pegava os primeiros livros que encontrava pela frente e partia para a casa de Júlia, dizendo que ia estudar na casa de um amigo. Ela, por outro lado, não precisava mentir para ninguém, já que passava o dia inteiro sozinha em casa.  Júlia morava somente com o pai – ela nunca falava sobre a mãe – que trabalhava o dia inteiro.

Era fácil para Júlia, porque ela tinha a casa toda para ela. Era excitante para Mateus, porque ninguém mais sabia disso. Nem seus pais, nem Lucas, nem ninguém. Era um segredo só deles, e Mateus gostou da sensação de ter um segredo com alguém.

Não. Mateus gostou da sensação de ter um segredo com Júlia.

Na verdade, havia uma terceira pessoa que sabia de tudo: o porteiro do prédio de Júlia. Entretanto, depois de alguns dias, o sujeito começou a abrir o portão para Mateus assim que o via na calçada. Mateus nem precisava mais tocar o interfone. Era tratado como um morador. Ou como o namorado de uma moradora, pensou um dia.

Mateus sabia apenas que entrar no prédio sem ser anunciado fazia com que ele se sentisse importante. E fazia com que ele enxergasse o porteiro como uma espécie de aliado. Não, mais que um aliado. Um cúmplice.


IV

As tardes que passava com Júlia desobedeciam tudo o que Mateus sabia sobre o tempo. Elas passavam rápido demais, às vezes num piscar de olhos, mas cada uma delas era uma vida inteira.

Conversavam sobre tudo. Sobre a vida, sobre música, sobre a vida, sobre filmes e mais um pouco sobre a vida. Ela tinha quase dois anos a mais que ele e havia nascido em outro estado – estava sempre se mudando por causa do trabalho do pai. Sem irmãos, estava acostumada a ficar sozinha em casa a maior parte do tempo.

Nos primeiros dias, Mateus não se sentia exatamente à vontade ao lado dela. Júlia parecia ser muito mais madura que ele e, às vezes, parecia se divertir quando ele ficava sem saber o que falar. Isso acontecia com frequência nos primeiros dias, mas logo ele começou a se sentir mais confortável ao lado dela e passou a se abrir mais.

Contava histórias do seu passado, coisas que havia aprontado com seus amigos, normalmente aumentando discretamente um pouco sua participação em cada uma delas.

Não sabia ao certo porque fazia isso. Talvez para competir com as histórias que Júlia contava. Em algumas vezes, elas eram bem parecidas com as de Mateus. Em outras, porém eram sobre viagens com amigas e festas com meninas e meninos e música alta e garrafas de bebida escondidas dos pais. Não eram muitas – eram bem poucas, na verdade – mas estavam ali e, na opinião de Mateus, formavam um pequeno muro entre ele e Júlia.

Mateus, que normalmente se reunia com os amigos somente para jogar videogame, e sempre com os pais por perto, ouvia tudo tentando parecer experiente e com medo de Júlia perceber que aquele mundo com festas e bebidas era bastante misterioso para ele. Assim, disfarçava isso aumentando suas histórias, normalmente fazendo com que ela parecesse mais engraçada do que era realmente, somente para ver Júlia rindo, algo que reduzia a distância entre eles. Ao menos, era o que Mateus acreditava.

Na verdade, fazer Júlia sorrir sempre fez Mateus se sentir bem, mas se tornou algo especial na vida do menino depois daquela terça-feira. Não estava nem frio nem calor, e ela vestia uma camiseta de rock e seus os cabelos estavam presos preguiçosamente com uma caneta.

Ambos estavam na varanda comentando um negócio qualquer que havia acontecido na escola. De repente, Mateus soltou um comentário que fez a garota gargalhar como ele nunca havia visto. Ela jogou a cabeça para trás e riu alto e gostosamente. Seus cabelos escaparam do nó improvisado com a caneta e algumas mechas caíram sobre seu rosto.

Mateus observou tudo aquilo vidrado.

De repente, tudo o que importava para ele desapareceu. Os brinquedos, os amigos, a escola, os videogames, os desenhos animados, os jogos do seu time que assistia ao lado do pai... Nada mais importava. Na verdade, nada mais existia. De repente, tudo aquilo que ele tratava como tesouros – como a coleção de miniaturas de soldados da II Guerra que seu tio havia trazido da Inglaterra – sequer chegava perto da risada de Júlia para ele.

Teve que se esforçar para desviar o olhar antes que Júlia percebesse. Percebeu imediatamente (e com uma certeza que nunca havia sentido antes) que jamais se esqueceria daquele momento. E, quando Júlia estava conseguindo parar de rir e falou algo sobre ele ser a pessoa mais legal que ela havia conhecido, ele tentou responder alguma coisa, mas não conseguiu e percebeu que também havia se esquecido de respirar nos últimos segundos.

Horas depois, foi embora para casa sob uma espécie de encantamento. Há anos, Mateus entrava em casa e ligava a televisão no canal de desenhos animados. Fazia isso quase automaticamente. Neste dia, ele seguiu o mesmo ritual. Tirou o tênis, ligou a televisão e se largou no sofá.

Mas, neste dia, diferente dos outros, ele não assistiu nada. Ficou olhando para a televisão pensando em Júlia, em sua risada, em ele ser a pessoa mais legal que ela havia conhecido e como ele devia ter falado alguma coisa, e não apenas desviado os olhos e quase engasgado como uma criança. Pensou em diversas respostas que poderia ter dado, e jurou para si mesmo que se um dia Júlia falasse aquilo de novo, ele iria responder alguma coisa. Qualquer coisa.

Mas ao imaginar Júlia falando de novo que ele era a pessoa mais legal do mundo fez com que ele percebesse que estava morrendo de medo de um dia ela falar aquilo de novo. Tentou imaginar se Júlia estava pensando nele naquele momento, o que ela estaria fazendo e se sentiu vontade de sair de casa e ir vê-la dela de novo, mesmo sem conseguir numa desculpa para tocar a campainha da casa dela.

Acomodou-se melhor no sofá e fechou os olhos. E, dentro de seus olhos, Júlia gargalhou mais uma vez à sua frente e falou que ele era a pessoa mais legal que ela havia conhecido – desta vez, não distraidamente como horas antes, mas mais séria e olhando diretamente para ele. Desta vez, esperando por uma resposta de Mateus. Desta vez, querendo uma resposta de Mateus.

Sentia-se confuso e um pouco idiota. Sentia um buraco no seu peito, mas também se sentia a pessoa mais importante do mundo. Sem conseguir encontrar uma resposta, acabou pegando no sono, sem prestar a menor atenção no gato e no rato que se espancavam com martelos e marretas cada vez maiores na televisão.

(Continua aqui)

8 leitores:

Anônimo disse...

Por favor, nunca pare de escrever.

Marina disse...

Amando tudo.

Unknown disse...

Isso é lindo pra caralho! Tô com o Matheus nessa

K.P. disse...

Meu coração até diminuiu o ritmo da batida um pouco. Que coisa mais linda.

Lari Bohnenberger disse...

Tu é muito foda!

Uma das coisas mais lindas que eu já li!

Isabele de Paula disse...

Desconfio que o pobre Mateus não vai se dar muito bem nessa...

Amanda Tracera disse...

Vou repetir o pedido do Anônimo lá em cima, porque realmente preciso que você me (nos) faça esse favor: "nunca pare de escrever."

Varotto disse...

"As tardes que passava com Júlia desobedeciam tudo o que Mateus sabia sobre o tempo. Elas passavam rápido demais, às vezes num piscar de olhos, mas cada uma delas era uma vida inteira."

Grande imagem.

E a cena da gargalhada: ÉPICA
(e, desta vez, nenhum figurante do Ben Hur vai morrer).

 

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